Monday, April 20, 2009

A pequena Afegã

Olga era ruiva, seus cabelos espigados em cachos, sua pele com um tom sereno, seus olhos eram ímpares, únicos. Uma personagem peculiar, intrínseca, real, mas em longos momentos têm feixes irreais. Vivia de livros, romances, se perdia nas palavras, na arte de versificação. Sofrida, filha de afegãos. Descriminada pelo regime Talibã, sua mãe assim como todas as mulheres afegãs usava um vestido preto, esquivo, que cobria o corpo desde a cabeça até os pés, com apenas uma única abertura na zona dos olhos, este vestuário escárnio se chama burca.
A menina dos cabelos espigados tinha traços, linha, feitio afegão, era vítima de um regime que queimava livros, artigos, história. Porém seu pai ensinou a ler, sua mãe deu livros clandestinos, a pirataria de escritos é camuflada, interessante, engraçada. São poucos os que sobrevivem de obras literárias em época tão conturbada.
A pequena dos olhos ímpares era diferente das outras, exceção. A maioria das mulheres era obrigada a se casar, escolas femininas eram proibidas, as garotas se casam em geral aos 12 anos. O casamento, a união, o vínculo entre um homem e uma mulher envolve um ritual financeiro, geralmente a noiva conhece o noivo no dia do casamento, o afeto anterior, feminino, masculino é muitas vezes inexistente, irreal. Olga não se casou, pelo contrário se apaixonou secretamente por um jornalista, trama proibida, dissimulada. Durou pouco o romance, diria que foi um flerte escasso. Neste mundo pode-se amar apenas secretamente, mentalmente, subjetivamente, discretamente. Não deixe os Deuses, nem a sociedade Talibã saber que apóia jornalistas europeus, brasileiros, estes são considerados marginais da literatura.
A personagem dos cabelos ruivos sobreviveu ao mundo islâmico, viu a queda do temível regime Talibã. Em tempos difíceis os livros foram refúgios, lia secretamente, de tudo: comunismo, anarquismo, poemas, romances, versinhos, sabia até algumas letras de músicas contemporâneas. Seu pai era um grande pirata de livros, outrora, foi preso, torturado, subjugado, condenado.
Entretanto, as mulheres estavam demasiadamente marcadas pelo terror, receio, susto, muitas ainda têm medo de tirar a escarna burca. Poucas, raras têm traços tão belos, doces, leves como da pequena Olga, a maioria perdeu a esperança, a descrença está descrita em seus olhos, o medo estala em suas vidas, mal sabem das virtudes dos livros. E assim torna-se difícil sobreviver, compreender um mundo tão contraditório, intrínseco, desumano. A escrita é apenas uma denúncia dos segredos mundanos.

Ana Luísa Nardin

Friday, April 10, 2009

Sensibilidade de uma lírica

A causa xadrez, o lenço violeta, à sapatilha roxa, as unhas vermelhas. Os cabelos são curtos e têm cor de amora. A delicadeza está nos anéis ganho pela bisavó, nas trancinhas no cabelo, na doçura, no charme do batom vermelho.
A suavidade da escrita está combinando com elegância dos avós, com a mulher formosa, embriagada, cheia de entusiasmo.
O choro é delicado, brando, pouco custoso, real. A distancia entre Minas Gerais e São Paulo é demasiadamente doido. Lembre-se do bisavô que já se foi de um modo sereno, limpo de nuvens, tranqüilo, puro. Não queremos odiar a morte, mas nos aborrecemos com a ausência. Sinta á lagrima arder, não tenha vergonha da sensibilidade de um eu-lírico perturbado com o mundo. Acreditem em tudo que os avós dizem, eles são sábios, e cheios de orgulho. Um dia eles cessam, extinguem e se vão.
Se perca na ligeireza dos olhos verdes, na música dos negros, no samba de raiz. Não sabemos mais o que real e o que é sublime. Sinta raiva, todos se vão um dia, vocifere de saudades, dance até os pés formigarem, abrace aquele camarada, beije aqueles que te causam calafrios, desejos, perturbações, sonhos e pesadelos.
Lembre-se do gaiato que flertava outrora, do travesso de expressão leve, doce, singela, que ambos gostam de Chico, sabem versinhos de Tom, talvez um dia encontrem-se no mundo real, paralelo e intimo. Não se esqueça dos olhos claros se misturando ao lirismo das pérolas negras. Sinta raiva dos namoricos, mas estes vão e vem.
Escreva ate os calos arderem em chamas, sangrarem, e em pouco segundos o alivio, a meiguice, ternura se desmancham nas folhas de pergaminhos amargo. A escrita trás a leviandade de volta, as dores são internas e intimas.
Não se preocupe se a causa xadrez não combina com o lenço violeta. Goze, divirta-se, esqueça as regras, os tabus, as chatices, por longos segundos permita-se viver. Tome um porre de ficar zonza, bêbeda, louca e cante Raul Seixas com os andarilhos de rua, grite, ouça o seu eco. Viva loucamente e intensamente. Esqueça os comentários mirabolantes, lembre-se apenas dos poemas, do lirismo marginal dos poetas.
Então continue escrevendo tudo, angustias, desejos, sonhos, mas principalmente sobre a delicadeza e fragilidade da vida. É difícil viver na transição de um próprio eu – lírico, é espinhoso entender os humanos, o quão interessantes e intrigantes somos.

Ana Luísa Nardin

Friday, April 3, 2009

Meninice

Há algum tempo venho escrevendo sobre o agora, de um jeito cortês, frágil, elegante, porém sou cheia de espinhos, de saliências e contradições. Gosto da arte de escrever, dos bilhetes, dos manuscritos, das cartas, dos meus segredos. Aprecio a caligrafia intima, magistral.Os versos, o lirismo dos poemas, os romances escassos, são todos os refúgios de uma rapariga que oscila entre o ser menina e mulher.
Sou aquela que não se pode ler tão pouco interpretar, ás vezes um verdadeiro mistério dotado de cautelas indecifráveis, cheia de encantos e desencantos. Aprecio minhas risadas tímidas, as gracinhas espontâneas, meus comentários mirabolantes. Rabiscos intrigantes e interessantes surgem na minha vida de uma maneira inocente.
Neta do chocolate amargo, do gosto ardido da tequila, dos merengues de morango, das películas melancólicas, da música cubana, da arte contemporânea.
As semelhanças com bonecas, bailarinas, princesas, porcelanas são todas fictícias, irreais, sou feita de carne, osso e sentimentos. Estes são capazes de corroer, de subjugar, de reprimir, mas são cheios de ligeirezas.
É difícil adentrar ao mundo dos homens, aceitar a chatice mundana, o egoísmo dos humanos me causa náuseas. As minhas incoerências, os erros são absurdos, o meu casulo é improvável. As manias da meninice estão intactas, o hábito de roer unhas oscila, ando nas pontas dos pés durante um ato de maluquice, e quando dialogo com garotos que acredito serem realmente interessantes seguro minhas mãos para trás, de um modo delicado, sei que é ridículo e cômico, mas elas tremem bruscamente.
E assim vivo na intimidade de um eu poético, bebo do meu próprio lirismo, flerto com rapazes que subjugo interessante, porém é difícil saber se o gaiato é belo, formoso, agradável, o quão airoso é.
A infância se desmantela aos poucos, as folhas da memória oxidam-se vagarosamente, como nos livros antigos de páginas amarelas do meu avô, ficam apenas as palavras negras, fortes. Lembranças marcantes que oscilam entre sentimentos belos e ruins. Conhecer a morte é demasiadamente doloroso, o vazio, a molesta, a nostalgia que fica é indescritível.
José se foi aos 93 anos e era belo, intelectual, elegante, o bisavô me contava histórias fabulosas, para min um verdadeiro herói de cinema preto em branco, daqueles que eu nunca vou esquecer. Sua foto esta estampada na minha memória, e no piano de madeira antiga da sala.
E assim me desembaralho, os poucos vão entendendo a realidade cruel, as contradições de um mundo indecifrável. A menina ainda está dentro de min de um modo singelo, odiando a morte, mas ás vezes teme é a vida, viver é mais complexo do que aparenta.


Ana Luísa Nardin