Tuesday, August 4, 2009

José

No interior de São Paulo a rapariga de olhos castanhos se refugiava, lá era si mesma, não existia máscara, molde, tampouco disfarce. Suas lágrimas são ardidas, seus flertes irreais, seus amores platônicos, suas saudades surreais. Têm traços líricos, em alguns momentos é poética, ás vezes se faz de amarga, mas é doce como um doce de leite.
Seu refúgio está nas paredes brancas, no tapete verde, nos móveis de madeira antiga, nas mobilhas de cristal, na cadeira de balanço, na sala cinematográfica, nos quadrinhos, nos vinis, no caderno em que se escrevem todas as particularidades sucedidas em cada singradura.
A nostalgia da rapariga que um dia deixou de ser menina ingênua, inofensiva, pura, é nítida, esta estampada na caligrafia intima. É difícil descrever sobre as virtudes da meninice, de como é apreciar as cores dos quadros de Frida Kahlo, das molduras de madeira com seus inúmeros detalhes, o som leve e bom dos discos antigos.
É impossível datilografar a singularidade das historias dos loucos, santos, pintores, músicos, anarquistas e comunistas que eram contadas no interior de Sampa por José, bisavô herói. Este fazia almoços informais, na casa de José podia ouvir vitrola o dia inteiro, até nas horas impróprias, ele dizia que as músicas inglesas eram o máximo, que os americanos sabiam fazer jazz, porém preferia a bossa nova, o samba engajado, tudo muito brasileiro. Dizia que o samba conta a vida e o cotidiano de quem mora na cidade, ressaltando a população mais pobre, que suas raízes foram fincadas no Brasil desde a época colonial, indiscutivelmente o gênero que confere a identidade brasileira.
Com o bisavô a garota/rapariga/menina aprendeu gostar de samba, de rock, blues, jazz, conheceu o mundo musical, a ser poética sensível e deparou-se com o lirismo sentimental, exacerbado.
E no fim da vida de José não teve samba,a rapariga não estava a fim de comer doce de leite. Existia apenas o falecimento, o silêncio. Ele sempre disse que quanto à nostalgia/saudade se tornar grande, maior deve ser o volume da vitrola, do rádio, do vinil, e menor tem que ser a melancolia, angustia.
Há tempos a menina, de olhos cor castanho quase negros, não escrevia, não borrava mais os escritos com sua aquarela, mas escuta música todos os dias desde o falecimento de José, seu verdadeiro herói.

Ana Luísa Nardin

8 comments:

  1. Eis que ela volta trazendo os desenhos e lembranças tão bem narrados que nos colocam em meio a tudo.
    Até os cheiros e sons são familiares.
    Lindo descobrir um pouco da história que te fez.
    Abração.

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  2. Interessante... aprendi a fazer bagel com o meu bisavô. Infelizmente, costumo comer comida enlatada e congelados atualmente.

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  3. Eu sempre quis ter tido um bisavô, no entanto a vida não me permitiu. Às vezes ela é cruel, mas não há o que fazer. O jeito é vivê-la, ouvindo música boa, pensando em pessoas boas. E, se essa pessoa, de alguma forma, não for mais acessível, que fique a nostalgia das lembranças boas. Afinal, lembranças também fazem parte da vida que, por vezes é cruel, mas que na maioria das vezes é muito boa aos que sabem aproveitá-la.

    Um beijo e não demora mais tanto assim, tá?!
    Tiago

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  4. e a rapariga está de volta!

    alias, meu blog tb... tive um problema com o nitzombies, mas fiz outro, dá uma passada lá!

    até!

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  6. Lembrar de pessoas queridas é uma bela oportunidade de retribuirmos o que recebemos.

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  7. Bela homenagem ao seu HERÓI!

    Faz tempo q vc n escreve.
    Estou com saudade de seus textos!

    super beijo =**

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  8. A lembrança que tenho do meu bisavô é de quando pintei os cílios da égua dele com tinta de parede. No outro dia, o bicho não conseguia abrir os olhos com os cílios colados. Maior surra!

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